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E a gamela de bacurubu em que a Inácia, a sua ama, lhe dava banho
- onde estava? Ah! As mudanças! Antes nunca tivesse vendido a
casa paterna...
A casa é que conserva todas as recordações de família. Perdida
que seja, como que ela se vinga fazendo dispersar as relíquias
familiares que, de algum modo, conservavam a alma e a essência das
pessoas queridas e mortas... Ele não podia, entretanto, manter o
casarão... Foi o tempo, as leis, o progresso...
Todos aqueles trastes, todos aqueles objetos, no seu tempo de
menino, sem grande valia, hoje valeriam muito... Tinha ainda o
bule do aparelho de chá, um escumador, um guéridon com trabalho de
embutido... Se ele tivesse (insistia) conservado a casa,
tê-los-ia todos hoje, para poder rever o perfil aquilino, duro e
severo do seu pai, tal qual estava ali, no retrato de Agostinho da
Mota, professor de academia; e também a figurinha de Sèvres que
era a sua mãe em moça, mas que os retratistas da terra nunca souberam
pôr na tela. Mas não pôde conservar a casa... A constituição
da família carioca foi insensivelmente se modificando; e ela era
grande demais para a sua. De resto, o inventário, as partilhas, a
diminuição de rendas, tudo isso tirou-a dele. A culpa não era
sua, dele, era da marcha da sociedade em que vivia...
Essas recordações lhe vinham sempre e cada vez mais fortes, desde os
quarenta e cinco anos; estivesse triste ou alegre, elas lhe acudiam.
Seu pai, o Conselheiro Fernandes Carregal, tenente-coronel do
Corpo de Engenheiros e lente da Escola Central, era filho do
sargento-mor de engenharia e também lente da Academia Real Militar
que o Conde de Linhares, ministro de Dom João VI, fundou em
1810, no Rio de Janeiro, com o fim de se desenvolverem entre
nós os estudos de ciências matemáticas, físicas e naturais, como
lá diz o ato oficial que a instituiu. Desta academia todos sabem como
vieram a surgir a atual Escola Politécnica e a extinta Escola
Militar da Praia Vermelha. O filho de Carregal, porém, não
passara por nenhuma delas; e, apesar de farmacêutico, nunca se
sentira atraído pela especialidade dos estudos do pai. Este
dedicara-se, a seu modo e ao nosso jeito, à Química. Tinha por
ela uma grande mania... bibliográfica. A sua biblioteca a esse
respeito era completa e valiosa. Possuía verdadeiros
"incunábulos", se assim se pode dizer, da química moderna. No
original ou em tradução, lá havia preciosidades. De Lavoisier,
encontravam-se quase todas as memórias, além do seu extraordinário
e sagacíssimo Traité Élémentaire de Chimie, présenté dans un
ordre et d'après les découvertes modernes.
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