Ouvimos estas palavras entrando. O sujeito calou-se imediatamente ...



Ouvimos estas palavras entrando. O sujeito calou-se imediatamente e sentou-se numa cadeira por trás de um mostrador, batendo com a bengala na ponta do botim.

- Trata-se de algum namoro, não? perguntei eu baixinho ao C...

- Curioso! respondeu-me ele; naturalmente é algum namoro, tens razão? alguma rosa de Citera.

- Qual! disse eu.

- Por que?

- Os jardins de Citera são francos; e ninguém espreita as rosas por fora...

- Provinciano! disse o C... com um daqueles sorrisos que só ele tem; tu não sabes que, estando as rosas em moda, há certa hora para o jardineiro... Anda sentar-te.

- Não; fiquemos um pouco à porta; quero conhecer esta rua de que tanto se fala.

- Com razão, respondeu o C... Dizem de Shakespeare que, se a humanidade perecesse, ele só poderia recompô-la, pois que não deixou intacta uma fibra sequer do coração humano. Aplico el cuento. A rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia, pode a fúria celeste destruir a.cidade; se conservar a rua do Ouvidor, conserva Noé, a família e o mais. Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da cidade fluminense é esta rua, rosto eloqüente que exprime todos os sentimentos e todas as idéias...

- Contínua, meu Virgilio.

- Pois vai ouvindo, meu Dante. Queres ver a elegância fluminense? Aqui acharás a flor da sociedade, - as senhoras que vêm escolher jóias ao Valais ou sedas à Notre Dame, - os rapazes que vêm conversar de teatros, de salões, de modas e de mulheres. Queres saber da política? Aqui saberás das notícias mais frescas, das evoluções próximas, dos acontecimentos prováveis; aqui verás o deputado atual com o deputado que foi, o ministro defunto e às vezes o ministro vivo. Vês aquele sujeito? É um homem de letras. Deste lado, vem um dos primeiros negociantes da praça. Queres saber do estado do câmbio? Vai ali ao Jornal do Comércio, que é o Times de cá. Muita vez encontrarás um cupê à porta de uma loja de modas: é uma Ninon fluminense. Vês um sujeito ao pé dela, dentro da loja, dizendo um galanteio? Pode ser um diplomata. Dirás que eu só menciono a sociedade mais ou menos elegante? Não; o operário pára aqui também para ter o prazer de contemplar durante minutos uma destas vidraças rutilantes de riqueza, -porquanto, meu caro amigo, a riqueza tem isto de bom consigo, - é que a simples vista consola.

Saiu-me o C... tamanho filósofo que me espantou. Ao mesmo tempo agradeci ao céu tão precioso encontro. Para um provinciano, que não conhece bem a capital, é uma felicidade encontrar um cicerone inteligente.

O sujeito que estava dentro chegou à porta, demorou-se alguns instantes, e saiu acompanhado por outro, que então passava.

- Cansou de esperar, disse eu.

- Sentemo-nos.

Sentamo-nos.

- Fala-se então de tudo aqui?

- De tudo.

- Bem e mal?

- Como na vida. É a sociedade humana em ponto pequeno. Mas por enquanto o que nos importa é a crise; deixemos de moralizar...

Interessava-me tanto a conversa, que pedi ao C... a continuação das suas lições, tão necessárias a quem não conhecia a cidade.

- Não te iludas, disse ele, a melhor lição deste mundo não vale um mês de experiência e de observação. Abre um moralista; encontrarás excelentes análises do coração humano; mas se não fizeres a experiência por ti mesmo pouco te valerá o teres lido. La Rochefoucauld aos vinte anos faz dormir; aos quarenta é um livro predileto...

Estas últimas palavras revelaram no C... um desses indivíduos doentes que andam a ver tudo cor da morte e do sangue. Eu que vinha para divertir-me, não queria estar a braços com um segundo volume de nosso padre Tomé, espécie de Timon cristão, a quem darás a ler esta carta, acompanhada de muitas lembranças minhas.

- Sabes que mais? disse eu ao meu cicerone, vim para divertir-me, e por isso acho-te razão; tratemos da crise. Mas por enquanto nada sabemos, e...

- Aqui vem o nosso Abreu, que há de saber alguma coisa.

O Dr. Abreu que entrou nesse momento, era um homem alto e magro, longo bigode, colarinho em pé, paletó e calças azuis. Fomos apresentados um ao outro. O C... perguntou-lhe o que sabia da crise.

- Nada, respondeu misteriosamente o Dr. Abreu; apenas ouvi ontem de noite que os homens não se entendiam...

- Mas eu já hoje ouvi dizer na praça que havia crise formal, disse o C...

- É possível, disse o outro. Saí agora mesmo de casa, e vim logo para aqui... Houve câmara?

- Não.

- Bem; isso é um indício. Estou capaz de ir à câmara...

- Para que? Aqui mesmo saberemos.

O Dr. Abreu tirou um charuto de uma charuteira de marroquim encarnado, e fitando muito os olhos no chão, como quem está seguindo um pensamento, acendeu quase maquinalmente o charuto.

Soube depois que era um meio inventado por ele para não oferecer charutos aos circunstantes.

- Mas que lhe parece? perguntou-lhe o C... passado algum tempo.

- Parece-me que os homens caem. Nem podia deixar de ser assim. Há mais de um mês que andam brigados.

- Mas por que? perguntei eu.

- Por várias coisas; e a principal é justamente a presidência da sua província...

- Ah!

- O ministro do Império quer o Valadares, e o da Fazenda insiste pelo Robim. Ontem houve conselho de ministros, e o do Império apresentou definitivamente a nomeação do Valadares... Que faz o colega?

- Ora, vivam! Então já sabem da crise?

Esta pergunta era feita por um sujeito que entrou pela loja mais rápido que um foguete. Trazia na cara uns ares de gazeta noticiosa.

- Crise formal? perguntamos todos.

- Completa. Os homens brigaram ontem de noite; e foram hoje de manhã a São Cristóvão...

- É o que eu dizia, observou o Dr. Abreu.

- Qual o verdadeiro motivo da crise? perguntou o C...

- O verdadeiro motivo foi uma questão de guerra.

- Não creia nisso!

O Dr. Abreu disse estas palavras com um ar de tão altiva convicção, que o recém-chegado replicou um pouco enfiado:

- Sabe então o verdadeiro motivo mais do que eu que estive com o cunhado do ministro da guerra?

A réplica pareceu decisiva; o Dr. Abreu limitou-se a fazer aquele gesto com que a gente costuma dizer: Pode ser...

- Seja qual for o motivo, disse o C..., a verdade é que temos crise ministerial; mas será aceita a demissão?

- Eu creio que é, disse o Sr. Ferreira (era o nome do recém-chegado).

- Quem sabe?

Ferreira tomou a palavra:

- A crise era prevista; eu há mais de quinze dias anunciei ali em casa do Bernardo, que a crise não podia deixar de estar iminente. A situação não podia prolongar-se; se os ministros não concordassem, a câmara os obrigaria a sair. Já a deputação da Bahia tinha mostrado os dentes, e até sei (posso dizê-lo agora) sei que um deputado do Ceará estava para apresentar uma moção de desconfiança.

Ferreira disse estas palavras em voz baixa, com o ar misterioso que convém a certas revelações. Nessa ocasião ouvimos um carro. Corremos à porta; era efetivamente um ministro.

Mas então não estão todos cm São Cristóvão? observou o C...

- Este vai naturalmente para lá.

Ficamos à porta; e o grupo foi-se pouco a pouco alimentando; antes de um quarto de hora éramos oito. Todos falavam na crise; uns sabiam a coisa de fonte certa; outros por ouvir dizer. O Ferreira saiu pouco depois dizendo que ia à Câmara saber o que havia de novo. Nessa ocasião apareceu um desembargador e indagou se era exato o que se dizia relativamente à crise ministerial.

Afirmamos que sim.

- Qual seria a causa? perguntou ele.