O meu sótão dava para o morro do Castelo. Numa daquelas casas trepadas no morro ...



O meu sótão dava para o morro do Castelo. Numa daquelas casas trepadas no morro, desordenadamente, vi um vulto de mulher, mas só adivinhei que o era pelo vestido. Cá de longe, e um pouco de baixo, não podia distinguir as feições. Estava afeito a ver mulheres nas outras casas do morro, como nos telhados da rua da Misericórdia, onde algumas vinham estender as roupas que lavavam. Nenhuma me atraía mais que por um instante de curiosidade. Em que é que aquela me prendeu mais tempo? Cuido que, em primeiro lugar, o meu estado de vocação amorosa, a necessidade de uma droga que me curasse daquela febre recente e mal extinta. Depois, - e pode ser que esta fosse a principal causa - porque a moça de que trato parecia justamente olhar de longe para mim, ereta no fundo escuro da janela. Duvidei disto a principio, mas erigi também o corpo, ergui a cabeça, adiantei-a sobre o telhado, recuei, fiz uma série de gestos que revelassem o interesse e a admiração. A mulher deixou-se estar; - nem sempre na mesma atitude, inclinava-se, olhava para um e outro lado, mas tornava logo, e continuava ereta no fundo escuro.

Isto aconteceu de manhã. De tarde, não pude vir a casa, jantei com os rapazes. Na manhã seguinte quando abri a janela, já achei na outra do morro a figura da véspera. Esperava-me, decerto; a atitude era a mesma, e, sem poder jurar que lhe vi algum movimento de longe, creio que fez algum. Era natural fazê-lo, caso me esperasse. No terceiro dia cumprimentei-a cá de baixo; não respondeu ao gesto e pouco depois entrou. Não tardou que voltasse, com os mesmos olhos, se os tinha, que eu não podia ver nada, estirados para mim. Estes preliminares duraram cerca de duas semanas.

Então eu fiz uma reflexão filosófica, acerca da diferença de classes; disse comigo que a própria fortuna era por essa graduação dos homens, fazendo com que a outra moça, rica e elegante, de alta classe, não desse por mim, quando estava a tão poucos passos dela, sem tirar dela os olhos, ao passo que esta outra, medíocre ou pobre, foi a primeira que me viu e me chamou a atenção. É assim mesmo, pensei eu; a sorte destina-me esta outra criatura que não terá de subir nem descer, para que as nossas vidas se entrelacem e nos dêem a felicidade que merecemos. Isto me deu uma idéia de versos. Lancei-me à velha mesa de pinho, e compus o meu recitativo das Ondas: "A vida é onda dividida em duas..." "A vida é onda dividida em duas..." Oh! quantas vezes disse eu este recitativo aos rapazes da Escola e a uma família da rua dos Arcos! Não freqüentava outras casas; a família compunha-se de um casal e de uma tia que também fazia versos. Só muitos anos depois vim a entender que os versos dela eram maus; naquele tempo achava-os excelentes. Também ela gostava dos meus, e os do recitativo dizia-os sublimes. Sentava-se ao piano um pouco desafinado, logo que eu lá entrava e, voltada para mim:

- Sr. Josino, vamos ao recitativo.

- Ora D. Adelaide, uns versos que...

- Que o que? Ande: "A vida é onda dividida em duas..."

E eu:

- A vida é onda dividida em duas...

- Delicioso! exclamava ela no fim, entornando os olhos murchos e cobiçosos.

Os meus colegas da Escola eram menos entusiastas: alguns gostavam dos versos, outros não lhes davam grande valor, mas eu lançava isto à conta da inveja ou da incapacidade estética. Imprimi o recitativo nos semanários do tempo. Sei que foi recitado em várias casas, e ainda agora me lembro que, um dia passando pela rua do Ouvidor, ouvi a uma senhora dizer a outra: "Lá vai o autor das Ondas"

Nada disso me fez esquecer a moça do morro do Castelo, nem ela esquecia. De longe, sem nos distinguirmos um ao outro, continuávamos aquela contemplação que não podia deixar de ser muda, posto que eu às vezes desse por mim a falar alto: "Mas quem será aquela criatura?" e outras palavras equivalentes. Talvez ela perguntasse a mesma coisa. Uma vez, lembrando-me de Sílvia, consolei-me com esta reflexão:

- Será uma por outra; esta pode ser até que valha mais. Elegante é; isso vê-se cá mesmo de longe e de baixo.