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A primeira vez que o Dr. Estêvão Soares falou ao deputado ...




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A primeira vez que o Dr. Estêvão Soares falou ao deputado Menezes foi no teatro Lírico no tempo da memorável luta entre lagruístas e chartonistas. Um amigo comum os apresentou ao outro. No fim da noite separaram-se oferecendo cada um deles os serviços e trocando os respectivos cartões de visita.

Só dois meses depois encontraram-se outra vez.

Estêvão Soares teve de ir à casa de um ministro de Estado para saber de uns papéis relativos a um parente da província, e aí encontrou o deputado Menezes, que acabava de ter uma conferência política.

Houve sincero prazer em ambos encontrando-se pela segunda vez; e Meneses arrancou de Estêvão a promessa de que iria à casa dele daí a poucos dias.

O ministro depressa despachou o jovem médico.

Chegando ao corredor, Estêvão foi surpreendido com uma tremenda bátega d’água, que nesse momento caía, e começava a alagar a rua.

O rapaz olhou a um e outro lado a ver se passava algum veículo vazio, mas procurou inutilmente; todos que passavam iam ocupados.

Apenas à porta estava um coupé vazio à espera de alguém, que o rapaz supôs ser o deputado.

Daí a alguns minutos desce com efeito o representante da nação, e admirou-se de ver o médico ainda à porta.

- Que quer? disse-lhe Estêvão; a chuva impediu-me de sair; aqui fiquei a ver se passa um tílburi.

- É natural que não passe, e nesse caso ofereço-lhe um lugar no meu coupé. Venha.

- Perdão; mas é um incômodo...

- Ora, incômodo! é um prazer. Vou deixá-lo em casa. Onde mora?

- Rua da Misericórdia nº...

- Bem, suba.

Estêvão hesitou um pouco; mas não podia deixar de subir sem ofender o digno homem que de tão boa vontade lhe fazia um obséquio.

Subiram.

Mas em vez de mandar o cocheiro para a rua da Misericórdia, o deputado gritou:

- João, para casa!

E entrou.

Estêvão olhou para ele admirado.

- Já sei, disse-lhe Menezes; admira-se de ver que faltei à minha palavra; mas eu desejo apenas que fique conhecendo a minha casa a fim de lá voltar quanto antes.

O coupé rolava já pela rua fora debaixo de uma chuva torrencial.

Menezes foi o primeiro que rompeu o silêncio de alguns minutos, dizendo ao jovem amigo:

- Espero que o romance da nossa amizade não termine no primeiro capítulo.

Estêvão, que já reparara nas maneiras solícitas do deputado, ficou inteiramente pasmado quando lhe ouviu falar no romance da amizade. A razão era simples. O amigo que os havia apresentado no teatro Lírico disse no dia seguinte:

- Menezes é um misantropo, e um céptico; não crê em nada, nem estima ninguém. Na política como na sociedade faz um papel puramente negativo.

Esta era a impressão com que Estêvão, apesar da simpatia que o arrastava, falou a segunda vez a Menezes, e admirava-se de tudo, das maneiras, das palavras, e do tom de afeto que elas pareciam revelar.

À linguagem do deputado o jovem médico respondeu com igual franqueza.

- Por que acabaremos no primeiro capítulo? perguntou ele; um amigo não é coisa que se despreze, acolhe-se como um presente dos deuses.

- Dos deuses! disse Menezes rindo; já vejo que é pagão.

- Alguma coisa, é verdade; mas no bom sentido, respondeu Estêvão rindo também. Minha vida assemelha-se um pouco à de Ulisses...

- Tem ao menos uma Ítaca, sua pátria, e uma Penélope, sua esposa.

- Nem uma nem outra.

- Então entender-nos-emos.

Dizendo isto o deputado voltou a cara para o outro lado, vendo a chuva que caía na vidraça da portinhola.

Decorreram dois ou três minutos, durante os quais Estêvão teve tempo de contemplar a seu gosto o companheiro de viagem.

Menezes voltou-se e entrou em novo assunto.

Quando o coupé entrou na rua do Lavradio, Meneses disse ao médico:

- Moro nesta rua; estamos perto de casa. Promete-me que há de vir ver-me algumas vezes?

- Amanhã mesmo.

- Bem. Como vai a sua clínica?

- Apenas começo, disse Estêvão; trabalho pouco; mas espero fazer alguma coisa.

- O seu companheiro, na noite em que mo apresentou, disse-me que o senhor é moço de muito merecimento.

- Tenho vontade de fazer alguma coisa.

Daí a dez minutos parava o coupé à porta de uma casa da rua do Lavradio.

Apearam-se os dois e subiram.

Menezes mostrou a Estêvão o seu gabinete de trabalho, onde havia duas longas estantes de livros.

- É minha família, disse o deputado mostrando os livros. História, filosofia, poesia... e alguns livros de política. Aqui estudo e trabalho. Quando cá vier, é aqui que o hei de receber.

Estêvão prometeu voltar no dia seguinte, e desceu para entrar no coupé que esperava por ele, e que o levou à rua da Misericórdia.

Entrando em casa Estêvão dizia consigo:

- Onde está a misantropia daquele homem? As maneiras de misantropo são mais rudes do que as dele; salvo se ele, mais feliz do que Diógenes, achou em mim o homem que procurava.