João do Rio
A MAIS ESTRANHA MOLÉSTIA
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A Afrânio Peixoto

Era o momento verde, o momento do aperitivo outrora absinto, hoje uma série de envenenamentos de cores variadas e de nomes ingleses, a que a leve estética sem inventiva dos cafés e das confeitarias continuava de chamar sempre o momento da água glauca. Por hábito, sentara-me a uma das mesas do terraço de confeitaria, os olhos perdidos na contemplação de Avenida, àquela hora vaga tão cheia de movimento e de ruído. No asfalto da rua era a corrida dos carros, apitos, trilos, largo bater de patas de cavalos, chicotadas estalando no pêlo das magras pilecas dos tílburis, carroções em disparada, cornetas de automóvel buzinando arredas, gente a correr, ou parada nos refúgios, à espera de um claro para poder passar, o estrépito natural do instante, à hora da noite nas cidades. Nas calçadas uma dupla fila de transeuntes sempre a renovar-se, o cinema colossal de homens das classes mais diversas, operários e dåndis, funcionários públicos e comerciantes, ociosos e bolsistas, devagar ou apressados ao lado de uma multicor galeria de mulheres, a teoria infinita do feminino para os gêneros: pequenas operárias, cocottes notáveis, senhoras de distinção, meninas casadeiras, simples apanhadoras de amor. As sombras, a princípio de um azul-furiureáceo, depois de um cinza-espesso, iam preguiçosamente espalhando o veludo da noite na silhueta em perspectiva das grandes fachadas. À beira das calçadas, a pouco e pouco os pingos de gás dos combustores formavam uma tríplice candelária de pequenos focos, longos rosários de contas ardentes, e era aqui o estralejamento surdo das låmpadas elétricas de um estabelecimento; mais adiante, o incêndio das montras faiscantes, de espaço a espaço as rosetas como talhadas em vestes d'Arlequins dos cinematógrafos, brasonando de pedrarias irradiantes as fachadas. Ah! os contos de fadas que são as cidades! Os meus olhos se fixavam na confusão miriônima das cores, vendo em cada roseta um caleidoscópio, sentindo em cada tabuleta o sonho postiço de um tesouro de Goiconda, a escorrer para a semi-opacidade da noite cascatas de rubis, lágrimas de esmeraldas, reflexos cegadores de safiras, espelhamentos jaldes de topázios, e eu recordava outras cidades, outras casas, o eterno boulevard, suprema orquestração do bom gosto urbano. Que fazer? Os meus olhos descansaram na multidão.

Algum tempo depois, reconheci, como tendo perdido alguma coisa, os olhos à procura, o nariz ao vento, o delicado Oscar Flores, um ente muito fino, muito sensível, do qual diziam horrores e que de resto parecia ter n'alma um fatigante segredo. Os segredos fizeram-se para ser contados. Tudo vai de ocasião. Que estaria Oscar Flores, com a sua palidez e as suas lindas mãos, a procurar assim? Esperei alguns minutos olhando a ver se via a causa daquela aflição e por fim, quando o jovem se resolvia a continuar, chamei-o ruidosamente. Ele voltou-se, como se fosse apanhado em flagrante. Estava visivelmente contrariado.

Vem daí tomar um aperitivo.

- Não obrigado. Tenho que fazer.

- Pois se já perdeste a pessoa a quem acompanhavas?...

- Viste? fez ainda mais pálido.

- Vi, isto é - sossega - vi que procuravas alguém.

Ele teve um suspiro, deixou-se cair na cadeira. Já agora tomava um cock-tail. O seu caso porém era outro. E fechou-se num silêncio nervoso, cortado de sobressaltos, alheado de mim - o seu habitual silêncio em todas as rodas, como sempre à espera de um sinal misterioso para partir e desaparecer. Olhei-o então com vagar. Era encantadoramente lindo com o seu ar de adolescente de Veroneso, a pele morena, o negro cabelo anelado. Como devia ser feliz assim rico e belo, com a sua bengala de castão de turquesa, a gravata presa de um raro esmalte, a atitude inquieta de um príncipe assassino e radiante, o Oscar Flores! E falavam tanto mal dele! Disse-lhe, íntimo e confidencial:

- Então, Oscar, onde estás? É por isso que te caluniam...

- Ah! tomou sorrindo, ainda falam de mim?

- Cada vez mais. Es o leitmotiv da falta de assunto. De resto há sempre na voz do povo um pouco de razão. Estou a acreditar que realmente tens um segredo. Ora, os segredos deixam-se para as mulheres e para os homens sem interesse, os homens vulgares...

Mas não tenho segredos, protestou cansado. Tenho apenas a mais estranha moléstia nervosa que ninguém sabe. Curioso, hem? Diante de mim toda a gente sente a anormalidade, outra esfera, outra vibração. Que será? Os mais espessos - e dessa espessura intelectual se faz a opinião da massa pensam logo nas degenerações normais, no centro das loucuras que é a cidade. E não é nada disso, é outra coisa - é a minha moléstia. A existência concentro-a nela, no desejo de domá-la e na irresistível vontade de satisfazê-la. Tenho estudado, tenho lido, tenho feito observações a ver se encontro outro tipo igual. Absolutamente impossível...