Nós sorríamos, fartos de igrejas e de sacrilégios



Nós sorríamos, fartos de igrejas e de sacrilégios, e íamos sair, quando o cidadão Honório, que até aquele momento não falara, murmurou:

- Tudo na vida é luxúria. Sentir é gozar, gozar é sentir até ao espasmo. Nós todos vivemos na alucinação de gozar, de fundir desejos, na raiva de possuir. É uma doença? Talvez. Mas é também verdade. Basta que vejamos o povo para ver o cio que ruge, um cio vago, impalpável, exasperante. Um deus morto é a convulsão, é como um sinal de pornéia. As turbas estrebucham. Todas as vesånias anônimas, todas as hiperestesias ignoradas, as obsessões ocultas, as degenerações escondidas, as loucuras mascaradas, inversões e vícios, taras e podridões desafivelam-se, escancaram, rebolam, sobem na maré desse oceano. Há histéricas batendo nos peitos ao lado de carnações ardentes ao beliscão dos machos; há nevropatas místicas junto a invertidos em que os círios, os altares, os panos negros dos templos acendem o braseiro, o incêndio, o vulcão das paixões perversas. A semana santa! Tenho medo desta quinta-feira. Para quem conhece bem uma grande cidade, esse dia especial sem rumores, sem campainhas, é um tremendo dia em que os súcubos e os incubos voltam a viver. Até as ruas cheias de sombra parecem incitar ao crime, até o céu cheio de estrelas e de luar põe no corpo dos homens a ånsia vaga e sensual de um prazer que se espera.

Às palavras do cidadão Honório fizera-se em tomo um expectante silêncio. O homem era pálido, de uma palidez bistrada. Estava vestido de preto e a sua mão exangue tinha no dedo mínimo como a quebrá-lo um negro morcego de aço prendendo entre as garras o turvo brilho de uma opala. Só então reparamos que não ria e talvez assustasse almas menos céticas. Ele, de resto, após uma pausa, continuou sem que lho pedissem.

- Oh! sim! Tenho medo desta quinta-feira porque vocês vêem o vicio aparente, o vício às claras, o vício que os jornais não noticiam apenas em atenção ao arcebispado. Eu vi o vicio que se não vê e dão calafrio do supremo horror, o vício misterioso e devorador rodando em tomo das igrejas. Há três anos acompanho-o. Ainda agora, ao sairmos da Candelária, lá estava ele na praça, fatal, definitivo, cruel, esperando...