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 Ia inconscientemente quase. Ao deixar a confeitaria, tinha o vago 
desejo de ver se encontrava qualquer coisa de interessante, e estava 
ali, de repente, com vontade de uma perversão qualquer, com o 
instinto de qualquer coisa de bem baixo, de bem vil, de bem indigno, 
em que refocilar o meu temperamento à solta. Talvez as luzes 
trêmulas, aquela gente que subia devagar e descia depressa, ao cheiro 
de suor, de perfume barato, de cosméticos e de cera, o roçar da 
canalha, o contato do meu corpo com outros corpos, peles de mãos 
ásperas umas, algumas macias, sugestionassem os nervos do meu pobre 
ser; talvez apenas fosse o fundo de lama com que fomos todos 
feitos... O fato é que ao voltar à rua da Carioca, eu era um 
homem que deseja, cuja percepção da luxúria é mais aguda, cujos 
nervos vibram mais. Uma saia repuxada, o relevo forte de uma anca, 
os encontrões brutais dos marçanos em traje de ver a Deus, dois 
olhos mais acesos, faziam-me parar, retroceder, pensar em frases, 
morder o bigode, andar devagar em tomo dos vendedores de doces e de 
refrescos, excitado pela frescura das peles, pelos trechos de carne 
ocultos, com as têmporas a suar frio e um calor nas faces, uma 
palpitação... A vontade do acanalhamento devorava-me, e eu ao 
mesmo tempo que queria satisfazê-la, queria ocultá-la.
 
 Ninguém, todavia, dera ainda por aquela nevrose, quando senti 
perfeitamente dois olhos pregados nos meus movimentos. Onde esses dois 
olhos? Eu os sentia, eu os sentia bem. Onde? Voltei-me, 
observei, desconfiado. A turba rumorejava na semipenumbra. Não 
havia ali cara que me olhasse. Só, perto do chafariz, dando àquele 
canto uma nota anormal, uma velha berlinda com os estores arriados, 
parecia esperar alguém. Que berlinda, filhos! Lembrava um velho 
carro da Assistência. Era suja, era grande, era vasta, quase um 
leito. Na boléia o cocheiro parecia de pedra, e os estores de pano 
vermelho estavam imóveis. Estaria vazia? Esperava mesmo alguém? 
Dei uma volta indagadora em tomo, e tive, oh! sim! tive a certeza 
de que ali dentro havia uma criatura, que ali vibrava estranhamente 
alguém, porque assim como sentira o calor, o fluido ardente de dois 
olhos fixos sobre mim, a descobrir-me a alma, sentia agora que a 
minha observação perturbava esses olhos. Quem estaria naquele 
carro? Quem? Um homem? Uma mulher? Quis falar ao cocheiro, 
mas, de repente, a berlinda pôs-se em movimento, desaparecendo 
pesadamente na rua Uruguaiana.
 
 
 
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