Oscar teve um gesto de impaciência.



Oscar teve um gesto de impaciência.

- Quando digo! É tão inverossímil que ninguém acreditaria. Entretanto tens diante de tio homem que analisa o seu tormento e não lhe resiste. Sabes que é o sentido soberano? O olfato, apenas o olfato. Sou como o escravo, o ergastulado do cheiro. Tudo é cheiro. É o cheiro que guia, repele, atrai, repugna, o cheiro é o condutor das almas. As nossas impressões são filhas do cheiro que atua como a luz e muito mais porque há cegos e não há ser vivo que não respire e não sinta o cheiro. O cheiro plasma, porque está no ambiente. Os caracteres dos homens são feitos de essências, as profissões dão aos entes certos e determinados cheiros. Vive oito dias numa casa de perfumes ou no houdoir de uma mulher galante, e as tuas idéias tomam aspecto de idéias com pó-de-arroz, de idéias efeminadas, made expressely para uma certa roda pueril. Sente o cheiro dos marinheiros, com o cheiro do mar e três ou quatro escalas de cheiros de óleos refrescados pela viração larga. Um homem sensível não pode viver muito tempo nesses lugares porque o cheiro permanente dá-lhe como uma continuidade da visão oceånica e um estado trepidante que lembra a vagabundagem de grandes navios por mares ignotos. A alma dos entes revela-se pelo cheiro. A das coisas também, só pelo cheiro. Conheço os interiores das casas, o gênero, a classe das pessoas que as habitam-a pelo cheiro, como de olhos fechados dir-te-ei a casa vazia apenas aspirando-a. Posso mesmo dizer-te que cada cidade tem um cheiro próprio, e que eu os sinto ao aproximar-me, ao saltar no desembarcadouro, cheiros que conseguem dar a impressão geral dos habitantes, cheiros honestos, cheiros voluptuosos, cheiros de seio...

- Mas, realmente, é delicioso.

- É atroz.

- A hiperacuidade de um sentido dirigida com estética. És o homem dos perfumes.

- Não me fales de perfumes, do perfume com a significação normal de extrato fabricado para o mercado. É outra coisa. Sou a vítima do cheiro. Para mim não há cheiros repugnantes, há cheiros desagradáveis. Tenho a sensualidade dos cheiros os mais diversos, do cheiro da terra, do cheiro da erva, do cheiro dos estábulos e do cheiro das rosas. Como comecei a sofrer desse desenvolvimento paroxismado do sentido olfativo? Sei lá! Não foi o perfume, foi a extensão vasta dos cheiros que não são perfumes. Em criança, antes de levar qualquer gulodice à boca, instintivamente cheirava-a de olhos cerrados, para sentir bem, e prelibar deliciosamente o prazer de degustá-la. Depois, quando me tomavam ao colo, ao beijar-me, achava sempre meio de cheirar, de aspirar as pessoas agradáveis. Cada pessoa tem um cheiro diverso. Na minha infåncia a perversão - sê-lo-á de fato? - surgiu ensinando-me todo o pecado. Gostei da carne porque cada nuca é um pouco do olor da natureza, e há bocas que são como orquestrações de odores. Ah! esse tempo ainda ingênuo, esse tempo instintivo... Eu me envolvia nas roupas brancas que as raparigas tinham usado, pendia para as cabeleiras com tal ånsia aspiradora, tinha uns modos tão pouco normais que a família se assustava e as raparigas achavam uma infinita graça. Ah! que pequeno vicioso! Elas diziam convencidas de que eu gostava apenas do cheiro das suas roupas. Não era, porém. A minha nervrose olfativa se acentuava cada vez mais, cada dia mais com caráter desabridamente sensual, e já rapazola, não distinguia o que me poderia conceder o prazer: a erva molhada, o cheiro dos estábulos, um cheiro de nuca, um cheiro de corpo, e já começava a sentir as cruciantes necessidades de certos cheiros, que eram tão violentas quanto a fome ou amor. Então era preciso alhear-me, deixar a roda dos conhecidos, sair por aí, a ver se descobria o cheiro que eu precisava, o cheiro que não sabia qual era, mas devia tranqüilizar-me.