Machado de Assis O REI DOS CAIPORAS



Os acontecimentos humanos são regidos por um destino cego e caprichoso? Há estrelas propícias e estrelas funestas? Tem fundamento a crença popular de que certas criaturas são felizes porque choraram no ventre materno, e outras desgraçadas porque não choraram nem riram?

Questão é esta que não me atrevo a deslindar. A filosofia diz que os homens dependem de si; o vulgo aponta mil casos em que todos os esforços de um homem vão esbarrar diante de uma força invisível que o não deixa dar um passo adiante.  A filosofia é uma boa senhora, e o vulgo é um sujeito prático; seria parcialidade inclinar-me a qualquer deles. Atento-me a ambos.

O que vou contar alude a esta questão de fatalidade e destino.  O vulgo inventou uma palavra para indicar a fatalidade de um homem; chama-lhe Caiporismo. Os dicionários ainda não trazem o termo, mas ele corre já pelas salas e ruas e adquiriu direito de cidade.

João das Mercês era o tipo do homem caipora. O destino com todas as suas legiões de auxiliares tinha tomado a pessoa de João das Mercês por alvo de seus tiros. João das Mercês se caísse de costas tinha toda a certeza de quebrar o nariz.

Choveram-lhe desde o berço as contrariedades. Entrou no mundo com o pé esquerdo.  É mister ler esta expressão com a sua significação literal e real. A mãe de João das Mercês não resistiu aos trabalhos cirúrgicos e faleceu horas depois de vir à luz o filho.

Foi-se buscar à pressa uma ama.  Encontrou-se ao cabo de algumas horas uma preta que alimentou o pequeno durante cinco dias, e morreu de erisipela em um joelho. A segunda ama era uma mulher livre que tinha a mania de jogar na loteria, e que ao fim de um mês tirou a sorte grande: saiu da casa para ir abrir uma loja de costuras.  A terceira entrou a amar o irmão mais velho do pequeno, com violência tal, que o pai julgou acertado mandá-la embora. Veio quarta ama que era dorminhoca e deixava o pequeno berrar toda a santa noite; a quinta ama era respondona; a sexta dividia os afetos entre o menino e um permanente; a sétima foi aturada até o fim do tempo da amamentação, a despeito de uma voz de soprano que irritava os nervos do dono da casa, cantando modinhas do norte todo o santíssimo dia.

Parece que esta variedade de leite e de amas influiu poderosamente em João das Mercês.  Logo nos primeiros anos verificou-se nele uma tendência pronunciada para o sono, influxo da quarta ama. Aos cinco anos nada o alegrava mais que ver passar a tropa na rua, gosto que lhe ficou naturalmente do leite que bebeu à namorada do permanente. Aos sete anos cantava sofrivelmente, aos oito teve uma erisipela, aos doze furtou ao pai cinco mil réis para comprar um quarto de loteria; aos quinze começou a namorar uma prima e aos dezesseis foi posto fora de casa por seus atrevimentos.

Aqui temos nós João das Mercês na rua, com dezesseis anos, sem vintém na algibeira, nem pouso certo.  Felizmente a prima que ele namorava ainda tinha mãe e pai, que eram muito amigos de João das Mercês e haviam até brigado com o pai dele a propósito de umas palmatoadas que este aplicara ao filho. João encaminhou-se para lá.

- Meu pai deitou-me fora de casa, disse ele a dona Angélica; venho ver se me dão pouso e mesa, porque não tenho outro recurso.

- Fica João, respondeu a senhora dona Angélica; fizeste bem em te lembrares que ainda tens uma tia; aqui não te há de faltar nada, ao menos enquanto eu e o Gaspar vivermos.

Marianinha apareceu na sala e soube das desgraças do jovem primo.  Ao mesmo tempo teve notícia de que ele ia morar lá. Marianinha que era o tipo da inocência, bateu palmas e apertou a mão do primo, com uma efusão tal que não escapou à perspicácia da senhora dona Angélica.