E olhe que aqui, quase todos têm a sua história...



O barão teve um sorriso cético.

- Meu caro, o Rio tem, como Paris ou Londres ou mesmo Montevidéu, a sua season. A season começa regularmente com a chegada do primeiro mambembe estrangeiro, mambembe naturalmente insuportável, e fecha com os calores da primavera, na abertura do salão de pintura. É a época do luxo, da exibição, do sacrifício para aparecer, da tagarelice, em que toda a gente fala mal do próximo e entende de arte, é a época escolhida pelos que pretendem tomar lugar na sociedade. Nós somos uma sociedade em formação - a mais atraente, a que mais tenta por conseqüência, não só pelas suas taras, que há vinte anos não eram julgadas mal, como pelo nosso fundo meio ingênuo de aceitar tudo o que brilha, seja diamantino ou seja montana. Anualmente, de envolta com os políticos, os fazendeiros, os estrangeiros exploradores, aparecem essas figuras com um passado estranho, decididas a dominar, a entrar nos lugares honestos, a serem respeitadas.

São figuras de invernos. Querem dominar. E olhe que aqui, quase todos têm a sua história: as demoiselles Péres, talvez enteadas de um rei morto, o wildeano conde Rossi, lá longe, com o seu excepcional secretário cubano; Alberto Guerra, o sedutor irmão de D. Juan e também de Shylock, porque vive de emprestar a juros; a viscondessa Guilhermina, que chegou de Vichy e só está aqui de passagem; a Alda, a baronesa...

- Barão, cale-se, por favor! Cale-se! Figuras de inverno, não duvido. Mas a chilena é menos que isso.

- Ora, a chilena já não usa esse pseudônimo tão picante e ao mesmo tempo tão significativo para os guerreiros do Rio Grande. Todos vocês sabem a história de vício dessas três que cerca de dez anos amaram e arruinaram várias criaturas. Mas tinham de ter um nome honesto. As duas primeiras casaram. Esta é hoje a esposa do cônsul do Haiti no Pará.

- Então o homenzinho?...

- Um explorador riquíssimo que se presta a ser cônsul, auferindo todos os lucros do cargo. Deve ter uma fortuna superior a cinco mil contos. Tivemos relações em Belém e em Paris. É um caso de embrutecimento passional.

- Mas são realmente casados?

- Não há dúvida. Vocês conhecem a história das chilenas, três lindas criaturas da fronteira que se diziam chilenas por picante e a que os riograndenses chamavam chilenas como lembrança de certos estribos em que os pés ficam à vontade e toda a gente pode usar. Elas tinham topete, beleza, audácia. Para ser o vício arrasador não precisava muito outrora no Rio. Chegaram e logo a fama irradiou. De um dia para o outro, os fazendeiros ricos sentiram a necessidade de dar-lhes palácios, os banqueiros ofereceram-lhes as carteiras, os amorosos sem vintém prometeram vigor e paixão. As gaúchas ardentes, ardentes mesmo demais, faziam grandes loucuras sensuais, mas prestavam atenção ao futuro. Há mulheres que podem se entregar com frenesi a vida inteira sem conseguirem ser prostitutas. Elas tinham o frenesi, não, tinham o sinal de profissão, e depois, haviam nascido sob as estrelas complacentes. A Luíza partiu com um fazendeiro, e se engana é com os cometas, raramente. Natália recolheu com um negociante riquíssimo. Ficou apenas Maria, que diriam um caso anormal de luxúria, malbaratando dinheiro, embriagando-se, tripudiando no torvelinho da vida. Ora, Azevedo apaixonou-se pela Maria, há sete anos, vendo-a guiar uma parelha de cavalos zebrados que foram acabar no Jardim Zoológico como raridade. Maria atravessava uma das suas crises, devendo a casa, as mobílias, os cavalos, os criados, e até mesmo o adolescente robusto que fazia de Angias no fundo do palacete e de Automedonte à tarde, no passeio. Azevedo foi seringueiro ou coisa que o valha. Precisamente voltara do Amazonas, esfomeado de mulher e cheio de dinheiro. Teve o deslumbramento diante da beleza que Maria tornava provocante. Tentou o assalto, deixou-se prender, pôr o freio, montar, esvaziar. A opinião geral - e aliás alegre, era que Maria arruinaria o marchante selvagem. A sorte porém de Azevedo era intensa. Quanto mais dava, quanto mais pagava, mais ganhava. Isso devia ter concorrido poderosamente para a paixão do animal, fetiche como todos os simples, e irritar Maria, inimiga dos pagadores como todas as boêmias. Azevedo empolgou-a inteiramente. Ela, até então a Vênus vingadora, que arruina, arrasa, domina, de gênio voluntarioso, só encontrava uma satisfação: enganá-lo, traí-lo, roubar-lhe o corpo para o banquete dos esfomeados. Era uma performance entre a paixão cega e a raiva de fugir dessa paixão. Ao cabo de quatro meses, Maria proibiu-lhe a entrada, despediu-o. Estava coberta de jóias, com o cofre cheio e enfarada, aborrecida excedida pela convivência do pobre homem apaixonado e pagador. Meteu-se na grande orgia, para se convencer de que estava livre, livre por completo. Mas Azevedo, aguilhoado por aquela despedida, sentira de repente que perdia a sua carne e a sua sorte e recorria a todos os meios imagináveis para de novo apanhá-la, peitando consciências, interessando na sua desgraça à custa de bilhetes de banco as amigas da Maria, convencendo os camaradas de que era preciso fazer mudar de opinião Maria, aquela louquinha incapaz de pensar no futuro. Logo a chilena sentiu em tomo, cada vez mais presente, o fantasma do Azevedo. Falavam nas påndegas as amigas, por acaso: Ah! se aqui estivesse o Azevedo! Falava a cartomante que de oito em oito dias lhe deitava as cartas: vejo aqui um homem sério que muito a ama e agora afastado voltará a fazê-la feliz! Falavam os criados: Coitado do patrão; passou hoje por aqui, olhando muito... Falavam até os camaradas de cama e mesa: Afinal o Azevedo é um bom homem. E Maria viu que tendo despedido o Azevedo agora é que o tinha a todo o instante na lembrança, sem poder fazer-lhe mal, sem poder vingar-se, quase a convencer-se de que o idiota era bom. Certa vez disseram-lhe: o Azevedo parece resignado: vai montar casa para a Benevente. Maria teve um grande ódio e no outro dia Azevedo estava de dentro outra vez, louco de amor e ainda mais perdulário.