Daí talvez a minha curiosidade, a minha quase obsessão



Daí talvez a minha curiosidade, a minha quase obsessão. Espiava-a de longe, policialmente. Ela era mais dura ainda que as companheiras de serviço voluntário. Aparecia regularmente às oito, mercadejava a pelancaria com o ar irritado dos negociantes que nunca prosperaram, e retirava pela madrugada. Todas as noites! Que segredo sórdido acultava aquela voracidade crapulosa? Que drama esconderia a carcaça fatigada da velha?

Augusto Guimarães ainda mais me interessou dizendo-me:

- O curioso é que essas velhas são as envergonhadas do vício...

- Como?

- Salvo cinco ou seis, todas as outras têm ocupação, trabalho, família. Andam por aqui para ajudar ocultamente as despesas...

De Augusto Guimarães era natural admitir as mais extravagantes observações. Já me habituara de resto a hipóteses infames sem pestanejar, sem mesmo lhes compreender o alcance. Essa idéia, porém, impressionou-me. Assim, certa noite, quase à uma da madrugada, vinha eu de cear num clube de jogo, quando deparei na calçada deserta com a velha atroz. Aranha de horror, esperaria ainda alguém? De fato. No jardim estava um rapaz que a olhava. Grosseiro. Enfardelado numa roupa que parecia não chegar e era larga demais ao mesmo tempo. Mas dezoito anos ardentes, os olhos grandes, a face corada. Parei atônito. Podia ser neto da velha. Naquela mocidade não havia vestígios de sentimento de beleza ou pelo menos de respeito aos cabelos brancos? E a anciã? Tratá-lo-ia como aos outros ou teria desejo? Ele descia o jardim e ela aproximava-se do extremo que fica em frente à Companhia Telefônica. Mas, ao chegar aí, a velha deu de cara com um velho respeitável - sobrecasaca, chapéu-chile, três embrulhos, guarda-chuva. O velho exclamou:

- Por aqui, a estas horas, D. Joaquina?

- Boa noite, sr. Crescêncio. Venho da casa de D. Fortunata, lá na rua dos Andradas. Vou tomar o meu bonde...